Essa pintura produzida por Sandro Botticelli, foi construída a partir dos relatos de Luciano de Samósata sobre uma pintura de Apeles de Cós (Grécia, século IV a.C.?). Plínio, o Velho (em sua História Natural), Estrabão, Luciano de Samósata, Ovídio, Petrônio e outros autores deixaram informações suficientes sobre vida do artista Apeles. Todos o consideravam o mais importante pintor da antiguidade clássica. Tais descrições permitiram ainda que Apeles exercesse uma influência de modo indireto nos pintores da Renascença, pois é graças a esses textos que temos uma ideia ao menos bem construída sobre suas principais obras. Graças a um desses relatos detalhados como por exemplo, uma descrição feita por Luciano de Samósata que Sandro Botticelli, quase 1800 anos depois, recriou uma das pinturas do mestre grego, na sua obra intitulada "Calúnia de Apeles". Segundo Luciano, Apeles produziu sua pintura depois que ele foi injustamente difamado por um artista rival muito invejoso chamado Antiphilos, que o acusou na frente do rei do Egito, Ptolomeu I, de ser cúmplice de uma conspiração política. Depois de provado que era inocente, Apeles estampou a sua raiva e desejo de vingança em um quadro. "A Calúnia de Apeles" foi pintada por Botticelli por volta de 1496 para o banqueiro florentino, Antonio Segni. Executada na técnica têmpera sobre madeira, a obra mede 91 x 62 cm e se encontra na Galeria dos Uffizi desde 1773. Vale ressaltar que a pintura foi concebida depois da queda da Família Médici, durante o domínio das ideias do padre dominicano Girolamo Savonarola. Ideias estas, que formularam uma campanha puritana em Florença que é lembrada especialmente pelos recorrentes eventos públicos chamados de “fogueiras das vaidades”. Nesses eventos, obras de arte, livros e outros objetos que eram considerados produtos da vaidade humana, luxo desnecessário ou de natureza imoral eram coletados e queimados publicamente. Nessas fogueiras obras de Ovídio, Propertius, Dante, Boccaccio, Botticelli e Lorenzo di Credi, entre outros, foram destruídas.
A “Calúnia de Apeles” é uma complexa alegoria onde Botticelli manteve a estrutura cênica da composição das figuras e criou um cenário ricamente decorado. À direita do espectador, o rei Midas (o juiz) está ladeado pelas figuras alegóricas da Ignorância e da Suspeita, suas conselheiras. Estas murmuram-lhe constantemente palavras venenosas, rumores ao pé de suas orelhas de burro, que simbolizam a sua natureza tola. De olhos virados para o chão, sendo incapaz de vê o que se passa. Ao mesmo tempo, ele está estendendo a mão para um homem pálido feio que tem olho penetrante (a Inveja), que está em pé diante dele.
A Inveja, vestido de preto, traz uma linda jovem, cheia de paixão maligna e excitação, a Calúnia. Segurando-a com a mão direita, ele (a Inveja) estende um braço esquerdo muito comprido para alcançar o Rei, como que procurando por justiça. Acusadora, a Calúnia está segurando uma tocha acesa na mão esquerda, símbolo de suas mentiras, mas como se viesse para mostrar a luz, enquanto ela está puxando sua vítima pelos cabelos, com a mão direita. A Conspiração e a Fraude são as suas companheiras e não param de a adornar cuidadosamente adornam seus cabelos com flores, tranças e uma fita branca, os atributos da pureza, que entrelaçam nos cabelos da sua senhora, procurando disfarçá-la. Nas formas enganosas de belas moças, elas estão fazendo uso insidioso dos símbolos da pureza e da inocência em uma tentativa de esconder as mentiras da Calúnia. Apeles vem na figura de um homem inocente arrastado pela Calúnia que o agarra pelos cabelos. Sua inocência é demonstrada por sua nudez, o que significa que ele não tem nada a esconder. Em vão ele cruza as mãos, de modo a rogar pela sua libertação à justiça divina, superior àquela terrível farsa.
Atrás deles, a horrível figura de uma velha (o Arrependimento), vestida de negro profundo e em farrapos. Pesada e andrajosa, o Arrependimento olha sorrateiramente, por cima do ombro, com lágrimas nos olhos e cheio de vergonha, para a Verdade, que está se aproximando lentamente. Todos os outros ocultam a sua verdadeira natureza com muita roupa, alguns até evocando a pureza. Mas a Verdade aparece nua e linda, sem nada para esconder, tal como o próprio Apeles. Apontando para o céu, remetendo o inocente à justiça divina.
Botticelli baseou sua figura da Verdade no tipo clássico da pudica Vênus, bem como em suas próprias representações da Vênus. Ela traz uma beleza nua em um oposto eficaz a personificação do Arrependimento, uma velha mulher angustiada e com roupas surradas. Quem já foi caluniado assim não esquece jamais. E a magistral obra do mestre renascentista Sandro Botticelli é uma reflexão aos néscios, que atormentam os outros com os seus sussurros caluniosos.